Círio de Nazaré: A Maior Romaria de Fé e Devoção da Amazônia
Procissão do Círio de Nazaré em Belém do Pará com milhares de fiéis seguindo a berlinda com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré

No segundo domingo de outubro, as ruas de Belém do Pará se transformam em um imenso rio de fé e devoção. Mais de 2 milhões de pessoas se reúnem para celebrar o Círio de Nazaré, a maior procissão católica do Brasil e uma das maiores manifestações religiosas do mundo. Este evento centenário não é apenas uma expressão de religiosidade, mas também um símbolo da identidade cultural amazônica que transcende fronteiras e une gerações em torno da devoção à Nossa Senhora de Nazaré.

A procissão do Círio de Nazaré reúne mais de 2 milhões de fiéis nas ruas de Belém

História da Devoção

A história do Círio de Nazaré remonta ao ano de 1700, quando um humilde caboclo chamado Plácido José de Souza encontrou uma pequena imagem de Nossa Senhora às margens de um igarapé, na região que hoje conhecemos como o bairro de Nazaré, em Belém. Segundo a tradição, após levar a imagem para sua casa, Plácido descobriu que ela misteriosamente desaparecia durante a noite, apenas para ser encontrada novamente no mesmo local do achado inicial.

Este fenômeno repetiu-se por várias vezes, levando Plácido a compreender que deveria construir uma pequena ermida no local onde a imagem sempre reaparecia. A notícia do “achado” e dos eventos misteriosos se espalhou rapidamente, atraindo devotos que começaram a deixar velas, ex-votos e outras oferendas no local.

Imagem original de Nossa Senhora de Nazaré encontrada por Plácido em 1700

Imagem original de Nossa Senhora de Nazaré, encontrada por Plácido em 1700

O Primeiro Círio

O primeiro Círio de Nazaré oficial ocorreu em 8 de setembro de 1793, organizado pelo então governador do Grão-Pará e Rio Negro, Francisco de Souza Coutinho. Após adoecer, o governador prometeu que, se recebesse a graça da cura, organizaria uma grande procissão em homenagem à Nossa Senhora. Recuperado, ele cumpriu sua promessa, instituindo a procissão que levou a imagem do Palácio do Governo até a ermida no Largo de Nazaré.

O nome “Círio” deriva do latim “cereus”, que significa grande vela de cera. Isso porque, originalmente, a procissão acontecia à tarde e terminava ao anoitecer, quando os fiéis acendiam velas para iluminar o caminho na Belém do século XVIII, ainda sem iluminação pública.

“O Círio é apenas a cereja do bolo. O nosso trabalho na guarda é dia a dia na Basílica e nas comunidades. Essa preparação é feita diariamente nas missas, nas nossas orações, nas nossas espiritualidades.”

Oscar Pimenta, membro da Guarda de Nazaré

A Procissão: Um Mar de Fé

Atualmente, o Círio de Nazaré não se resume a uma única procissão, mas a um conjunto de 14 romarias oficiais que acontecem ao longo do mês de outubro, conhecido como “Quadra Nazarena”. No entanto, a Grande Romaria do segundo domingo de outubro continua sendo o momento mais aguardado e emocionante das festividades.

Vista aérea da procissão do Círio de Nazaré mostrando o percurso da Catedral da Sé até a Basílica Santuário

O percurso da procissão principal vai da Catedral da Sé até a Basílica Santuário de Nazaré

Principais Romarias

  • Traslado: Primeiro percurso da imagem, da Basílica até a Igreja de Nossa Senhora das Graças em Ananindeua.
  • Romaria Rodoviária: Leva a imagem de Ananindeua até a Vila de Icoaraci.
  • Romaria Fluvial: A imagem segue de barco pela Baía do Guajará, de Icoaraci até o porto de Belém.
  • Moto-romaria: Procissão com motocicletas que leva a imagem da Estação das Docas até o Colégio Gentil Bittencourt.
  • Trasladação: Ocorre na véspera do Círio, levando a imagem do Colégio Gentil Bittencourt até a Catedral da Sé.
  • Procissão do Círio: A principal romaria, que sai da Catedral da Sé até a Basílica Santuário.
  • Recírio: Procissão de despedida que ocorre duas semanas após o Círio, quando a imagem original retorna ao altar da Basílica.

A Corda: O Cordão Umbilical da Fé

Um dos elementos mais emblemáticos do Círio de Nazaré é a famosa corda, que se tornou parte da procissão em 1885. Naquele ano, uma enchente alagou o trajeto da procissão, fazendo com que a berlinda ficasse atolada. Os cavalos foram desatrelados e uma corda foi utilizada pelos fiéis para puxar a berlinda. Desde então, a corda tornou-se um símbolo de ligação entre os devotos e Nossa Senhora.

Fiéis segurando a corda do Círio de Nazaré durante a procissão

A corda do Círio, com 400 metros de comprimento, é disputada por milhares de promesseiros

Com 400 metros de comprimento e pesando cerca de 700 quilos, a corda é atrelada à berlinda e disputada por milhares de promesseiros que fazem questão de “pagar promessa” segurando-a durante o percurso. Para muitos devotos, a corda representa um “cordão umbilical” que os liga à Santa, invertendo simbolicamente a relação mãe-filho: são os filhos que conduzem a mãe pelas ruas de Belém.

“Eu me emociono só de imaginar em perder a minha mãe. Mas, graças a Deus, eu tenho uma outra mãe, que também se chama Maria, que cuida de mim lá de cima. São essas duas Marias que me dão força pra continuar e repetir este gesto de fé e devoção por quase 15 anos. É um sentimento que não tem explicação.”

Tom Vilhena, promesseiro que há 15 anos acompanha o Círio “na corda”

Desde 2023, a corda do Círio passou a ser produzida no próprio estado do Pará, utilizando fibras de malva e juta cultivadas na região amazônica, substituindo o sisal anteriormente importado de Santa Catarina. Esta mudança não apenas valoriza a produção local, mas também proporciona maior conforto aos promesseiros, já que estas fibras são mais macias e causam menos ferimentos nas mãos dos devotos.

Símbolos do Círio de Nazaré

Além da corda, outros elementos simbólicos fazem parte da rica tradição do Círio de Nazaré, cada um carregando significados profundos para os devotos:

Berlinda

Berlinda do Círio de Nazaré decorada com flores que transporta a imagem de Nossa Senhora

Espécie de pequeno santuário móvel onde é transportada a imagem de Nossa Senhora. Ricamente decorada com flores naturais, a berlinda passou a fazer parte do Círio em 1882 e é um dos símbolos mais importantes da procissão.

Manto

Manto que adorna a imagem de Nossa Senhora de Nazaré durante o Círio

A cada ano, a imagem de Nossa Senhora recebe um novo manto, confeccionado especialmente para a ocasião. A peça é produzida com base em doações e geralmente inspirada em trechos do Evangelho, simbolizando a renovação da fé.

Carros de Promessas

Carro de promessas do Círio de Nazaré carregado com ex-votos e objetos de cera

Veículos que transportam ex-votos (objetos de cera como casas, partes do corpo, barcos) oferecidos pelos fiéis como agradecimento por graças alcançadas. Representam a materialização da gratidão dos devotos.

Arraial de Nazaré

Tradição que começou na primeira edição do Círio em 1793, o Arraial de Nazaré era originalmente uma feira de produtos agrícolas. Hoje, transformou-se em um grande parque de diversões com barracas de artesanato, comidas típicas e brinquedos, localizado próximo à Basílica Santuário, onde os fiéis podem confraternizar após as celebrações religiosas.

Arraial de Nazaré com barracas de comidas típicas e parque de diversões próximo à Basílica

O Arraial de Nazaré é um espaço de confraternização e celebração da cultura paraense

Fé e Identidade Cultural

O Círio de Nazaré transcende o aspecto puramente religioso, constituindo-se como uma expressão genuína da identidade cultural amazônica. A festa une elementos da tradição católica com manifestações culturais típicas da região, criando uma celebração única que reflete a alma do povo paraense.

Gastronomia do Círio

A culinária é um aspecto fundamental das celebrações do Círio. Durante a quadra nazarena, as famílias paraenses se reúnem em torno de pratos tradicionais como a maniçoba (folhas da mandioca cozidas por sete dias com carnes diversas) e o pato no tucupi (pato assado servido com molho de tucupi, extraído da mandioca). Estes pratos, que exigem longo tempo de preparo, simbolizam a espera e a celebração do momento especial.

Mesa tradicional do Círio com maniçoba, pato no tucupi e outras iguarias paraenses

A gastronomia do Círio inclui pratos típicos como maniçoba e pato no tucupi

Expressões Artísticas

O Círio também inspira diversas manifestações artísticas, desde a confecção dos carros alegóricos e decoração da berlinda até a produção de artesanato relacionado à festividade. Artistas locais criam obras que retratam a devoção à Nossa Senhora de Nazaré e as tradições do Círio, contribuindo para a preservação e renovação constante desta rica herança cultural.

“A figura da mãe é aquela que sempre conduz o filho, mas no Círio este papel se inverte. A corda proporciona o papel invertido: é o filho que mesmo pedindo ajuda, pagando promessa, fica na condição de conduzir a mãe. Por isso que a corda, então, vai passar por um processo de sacralização, vai se tornar um dos maiores ícones do símbolos do Círio.”

Márcio Neco, historiador e cientista da religião

Impacto Social e Turístico

Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2004 e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, o Círio de Nazaré possui um impacto significativo na economia e no turismo de Belém do Pará.

Multidão de turistas e devotos na Praça Santuário durante o Círio de Nazaré

O Círio atrai turistas de todo o Brasil e do exterior, impulsionando a economia local

Durante o mês de outubro, a cidade recebe milhares de turistas, movimentando setores como hotelaria, gastronomia, transporte e comércio. Estima-se que a festividade gere mais de 80 mil empregos temporários e um impacto econômico superior a R$ 100 milhões na economia local.

Além do aspecto econômico, o Círio também desempenha um importante papel social, promovendo a solidariedade e o fortalecimento dos laços comunitários. Diversas ações sociais são realizadas durante a quadra nazarena, como distribuição de alimentos, atendimentos médicos gratuitos e atividades culturais acessíveis à população.

Círio em Números

  • Mais de 2 milhões de participantes na procissão principal
  • 14 romarias oficiais ao longo do mês de outubro
  • Percurso de 3,6 quilômetros na Grande Romaria
  • Corda de 400 metros de comprimento e 700 quilos
  • Cerca de 7 mil promesseiros segurando a corda simultaneamente
  • Mais de 80 mil empregos temporários gerados
  • Impacto econômico superior a R$ 100 milhões

Depoimentos e Curiosidades

Curiosidades sobre o Círio de Nazaré

  • A procissão de 2009 foi a mais longa da história, com duração de 9 horas e 15 minutos.
  • Embora o Círio de Belém seja o mais conhecido, o Círio mais antigo do Brasil acontece em Saquarema, Rio de Janeiro, desde 1630.
  • Em 2023, pela primeira vez, a corda foi produzida com fibras amazônicas (malva e juta) em vez do tradicional sisal.
  • Durante a ditadura militar, a corda chegou a ser proibida por cinco anos (1926-1931), sendo reintroduzida após pressão popular.
  • Em 2024, o governador do Pará presenteou o Papa Francisco com um pedaço da corda do Círio durante visita ao Vaticano.
Momento emocionante durante o Círio de Nazaré com devotos erguendo as mãos para a berlinda

A emoção dos fiéis é uma das marcas mais fortes do Círio de Nazaré

“Quando o Círio acaba, todo mundo quer levar um pedaço da corda. Eu nunca entendi o porquê, mas eu acho que a corda tem esse poder de transmitir – para outras pessoas – aquilo que só é vivido no Círio.”

Valdo Ferreira, devoto de Nossa Senhora de Nazaré

Pesquisas realizadas pelo engenheiro mecânico Nagib Charone, professor da Universidade Federal do Pará, revelam que a força exercida pelos promesseiros sobre a corda durante a procissão chega a 12 toneladas, fazendo com que ela se estique e aumente seu comprimento em até 10% ao final do percurso.

Um Patrimônio Vivo da Fé Amazônica

O Círio de Nazaré é muito mais que uma procissão religiosa – é um fenômeno cultural que sintetiza a alma do povo paraense e amazônico. Ao longo de mais de dois séculos, esta celebração tem se renovado e se adaptado, mantendo viva a essência da devoção à Nossa Senhora de Nazaré enquanto incorpora elementos da cultura local.

Basílica Santuário de Nazaré iluminada durante a noite com fiéis em oração

A Basílica Santuário de Nazaré, destino final da procissão e coração espiritual da festividade

Para quem deseja vivenciar esta experiência única de fé e cultura, o Círio de Nazaré acontece anualmente no segundo domingo de outubro em Belém do Pará. Mais que uma festa religiosa, é um encontro com as raízes profundas da identidade amazônica e uma oportunidade de testemunhar uma das mais belas manifestações de fé do povo brasileiro.

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